Antonio Visconti, ou a memória viva do MPSP
Hoje, 8 de maio, o Procurador aposentado completa 60 anos de ingresso no MPSP
“Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo.” Frase do filósofo, poeta e ensaísta espanhol George Santayana (1863-1952) ao demonstrar que a retenção é necessária para que o progresso aconteça.
Com esta advertência, colocada na mesa de um almoço no restaurante da Associação Paulista do Ministério Público (APMP), diante da janela que dá para as Arcadas da São Francisco, o Procurador de Justiça aposentado Antônio Visconti vai até onde o farol da memória é capaz de iluminar para contar histórias de uma das mais longevas carreiras dentro do Ministério Público do Estado de São Paulo.
A começar pela infância em Sorocaba, em casa vizinha ao antigo Fórum, na Praça Frei Baraúna, atrás do Mosteiro de São Bento… A riqueza de detalhes alcança a cor azul metálica do Jaguar que o Promotor Francisco Meirelles estacionava lá, nos idos dos 50 do século passado.
“O júri era um acontecimento na época e eu me encantei de saída com a atividade do promotor que, especialmente em comarcas do interior, era tido como um saco de pancadas e lutava para não ser derrotado no júri por 7 a zero”, ironiza o Procurador.
Mesmo assim, com o firme propósito de prestar o concurso do MP, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1958 e logo vieram os primeiros estágios nas promotorias criminais. E também os contatos com figuras que se tornariam expoentes da Justiça e do Direito: Alceu Arruda (ex-Presidente da APMP), Dirceu de Mello (ex-Presidente do TJSP), Ruy Junqueira de Freitas Camargo, Virgílio Lopes da Silva e Paulo Salvador Frontini (ex-PGJs) e Fábio Konder Comparato, os dois últimos, à época quintanistas, deixariam a Faculdade de Direito no ano seguinte.
Tempos Bicudos
Nas contas do doutor Visconti, corria o ano de 1964 e, para ingressar no MP, faltava ainda a prova oral, já marcada justamente para aquele fatídico 1º de abril. Com uma crise instalada, um Presidente da República deposto, e na iminência de a Constituição ser rasgada, quis o acaso que a arguição sobre Direito Constitucional não ocorresse “em consideração à situação nacional”, bradou na banca examinadora o doutor Gilberto Quintanilha Ribeiro, reconhecido professor de Direito Penal em Sorocaba e que depois foi Procurador-Geral, diz o doutor Visconti, puxando o fio da memória.
No mês seguinte, as portas do MP estariam abertas para a posse, com a nomeação para Araraquara. Tempos difíceis, já sob vigência do Ato Institucional n.º 1, e com o General Castello Branco na Presidência da República.
Lembra o doutor Visconti que o então Procurador-Geral de Justiça Werner Rodrigues Nogueira “teve um comportamento admirável ao recomendar aos Promotores e Procuradores – ‘mais topetudos’ – que parassem com qualquer atividade política. Isso um ano antes, em 1963, mas não teve jeito…”
O jogo virou e, com a ditadura, cinco promotores foram aposentados compulsoriamente: Darcy Passos, Antonio Pacheco Mercier, Luiz Carlos Alves de Souza, Plínio de Arruda Sampaio (eleito Deputado Federal pelo PDC) e mais tarde, Chopin Tavares de Lima, então líder do MDB na Assembleia Legislativa.
Sem contar as centenas de remoções, por conta da atividade dos Promotores, onde não havia junta de conciliação. Por darem assistência aos trabalhadores “eram rotulados de comunistas, algo absolutamente anacrônico, e que voltou à moda hoje em dia”, diz o doutor Visconti com ar de deboche.
Naquele tempo, “as arbitrariedades eram corriqueiras, não poupando políticos, magistrados, promotores, autoridades, pessoas de prestígio, em suma; bastava qualquer suspeita por parte dos detentores do poder ou de seus agentes, escreveu o doutor Visconti na revista Diálogo (janeiro/2004) do MPD- Ministério Público Democrático.
Naquele capítulo autoritário da história do País, o Ministério Público não se dobrou, relembra o doutor Visconti ao citar como figura exponencial Henrique Serraglia, que fez carreira na 1ª Promotoria Pública de Ribeirão Preto, e foi professor de direito na Universidade de Ribeirão Preto. E que lhe servira de inspiração no serviço público: a inteligência prevalecera sobre a força, sempre.
Então Promotor Substituto, recorda do périplo pelas comarcas do interior, como que pairando sobre o mapa do Estado, a cravar um ponto sobre as cidades em que passou: Araraquara, Votuporanga, Paulo de Faria, Guaratinguetá, Aparecida, Lorena, Cachoeira Paulista, Cunha, Catanduva, São Bernardo, Santo André, Fernandópolis, Jales, Santa Fé do Sul, General Salgado, Bariri, Sorocaba, todas com muitos causos a contar, alguns bons momentos e outros nem tanto.
Nascimento dos Grupos de Estudos
Doutor Visconti estava em Bauru por ocasião da missa de trigésimo dia da morte do ex-Procurador-Geral de Justiça, Mário de Moura e Albuquerque (1956-57/1964-65) quando surgiu a ideia de criação dos grupos de estudos. Naquela cidade aconteceu a primeira reunião, e com sucesso extraordinário, diz Visconti, na discussão sobre mudanças na lei de acidentes do trabalho. “As palestras de Paulo Salvador Frontini e Cândido Rangel Dinamarco demoliram a tal lei”. E foi marcada uma segunda reunião, em Araçatuba, para tratar da lei de abuso de autoridade, com ninguém menos que o Promotor Damásio Evangelista de Jesus, já destacado na época, e o Promotor Luiz Gonzaga Machado.
Nascia o primeiro dos Grupos de Estudos, que recebeu o nome do falecido Mário de Moura e Albuquerque. Este, segundo o doutor Visconti, foi um vigoroso tribuno do júri, membro do Conselho Penitenciário do Estado, Professor de Criminalística da Escola de Polícia de São Paulo, Fundador da Revista Justitia e da Associação Paulista do Ministério Público, onde também foi presidente (1952/55).
Depois vieram reuniões de Grupos de Estudos em Lins, Sorocaba, Ribeirão Preto, e na Capital… “Eu frequentava todas as reuniões. Quando era Promotor em Bariri, em vez de rodar o convite em mimeógrafo, fiz cartas manuscritas a cada Promotor.”
Caso Lindomar, maior repercussão
Lindomar Castilho, “o rei do bolero”, foi um campeão na venda de discos no final dos anos 1970. O casamento com a também cantora Eliane de Grammont durou apenas 1 ano. Já separado, mas louco de ciúmes e disposto a “lavar a honra”, como se dizia, disparou 5 tiros, dentro da boate Belle Époque, perto da avenida Paulista, onde ela fazia um show. Era madrugada de 30 de março de 1981 e o crime abalou o País.
Preso em flagrante, depois relaxado, Lindomar aguardou o julgamento em liberdade e, em agosto de 1984, foi condenado a 12 anos de prisão. Na acusação lá estava o doutor Visconti: “o primeiro assistente de acusação foi o José Carlos Dias e depois o Márcio Thomaz Bastos, (mais tarde, ambos seriam ministros da Justiça) e, do lado da defesa, o mestre da oratória e mais renomado criminalista, Waldir Troncoso Peres”.
O júri deu 4 a 3 pela condenação, no motivo de relevante valor social ou moral. “No dia do julgamento, uns dos últimos a acontecer no Salão do Júri do Palácio da Justiça, Dias apareceu no final, dando entrevista, e quando perguntado sobre o sistema penitenciário, ele respondeu: Vai melhorar, vai ter até cantor na prisão”, conta o doutor Visconti, com um sorriso largo…
O sucesso do cantor continuou atrás das grades. O álbum “Muralhas da Solidão”, de 1985, vendeu meio milhão de cópias e Lindomar ganhou a liberdade definitiva em 1996. Doutor Visconti resume a história dizendo que foi procurado pela filha dele, em 2022, e que ela estaria compondo um livro de memórias. Hoje se dedica a cuidar do pai doente, em Goiás.
16 mil dias
Eleito duas vezes para o Conselho Superior (1995/96 e 98/99), depois eleito para o Órgão Especial do Colégio de Procuradores, onde permaneceu até a aposentadoria em agosto de 2009, já no bloco dos mais antigos, Visconti somou 45 anos, três meses e 21 dias de Ministério Público de São Paulo. “Não imaginava permanecer tanto tempo assim… E se pudesse ficaria mais uns 5 anos”, confidencia.
Em novembro de 2010, no Grande Hotel de Águas de São Pedro, foi homenageado durante o 14º Congresso de Meio Ambiente e o 8º Congresso de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo. Na ocasião, o doutor Antonio Visconti foi lembrado pela disposição de participar de todas as edições daquele Congresso de Meio Ambiente.
Ex-Conselheiro Fiscal da Associação Paulista do Ministério Público de 1973 a 1976 e um dos atuais assessores especiais da Presidência da APMP, agora com mais tempo livre para uma doce aposentadoria, chegou a dedicar-se à dança, vez por outra no Clube Homs, mas os joelhos desencantaram o “pé de valsa”.
Mas se engana quem acha que a inatividade no serviço público, longe das rotinas burocráticas, seria um ponto final. Em 2012 abraçou a trincheira da advocacia, hoje sua ocupação principal, na lida com processos e consultas jurídicas, em ajuda aos mais necessitados.
Quantas renúncias? Quanto sacrifício em prol do MPSP ao longo de quarenta e cinco anos de ofício? Doutor Visconti desconversa… Fala do amor tardio por uma vira-latas, doação de uma ONG de Catanduva, depois de abandonada ainda filhote numa beira da estrada, no meio do ano passado. Flor é o nome da cachorrinha: mas não é flor que se cheire, diz emendando uma gargalhada!