icon clock Leitura 7 min

O PASSEIO DE MEURSAULT

O PASSEIO DE MEURSAULT

 

Walter Paulo Sabella*

 

Sol a pino. O dia transcorre quente. Um passeio a pé, após o almoço me leva até ali. Detenho-me bem próximo ao prédio da Associação Comercial de São Paulo, que exibe, numa das paredes externas, o grande painel do impostômetro, mecanismo que registra, em velocidade vertiginosa e incessante, a voracidade fiscal do Estado brasileiro (mas isto será assunto de outra crônica).

À minha frente, a rua Boa Vista, na qual estacionam alguns carroções de catadores de papelões, inclusive sobre as faixas reservadas às bicicletas, embora escassos os ciclistas que pedalam na área.

À minha direita, sob o viaduto, barracas improvisadas, dezenas delas, nas quais se empilha toda sorte de produtos à venda, de calçados a brinquedos, além de ambulantes, cujas vozes rouquenhas disputam a atenção dos passantes.

À minha retaguarda, o Pátio do Colégio, onde se instalam algumas tendas de moradores de rua, com seus trapos estirados sobre os gradis circundantes; no centro desse espaço primacial da cidade, o monumento em cujas bases de concreto se incrustam figuras de indígenas, clérigos e colonizadores, estes últimos metidos nas vestimentas da época. Quanto aos indígenas, alguns, de carne e osso, permanecem no local, quatrocentos anos após a chegada dos jesuítas; são indiazinhas, com suas crianças, cercadas de objetos artesanais próprios de sua cultura, esparramados pelo chão, expostos à indiferença dos transeuntes, que preferem ipads e iphones, mas as pobres criaturas não atinam com isso. E nem poderiam. Afinal, sob alguns aspectos, linhas estruturais de sua individualidade pouco se distanciam do período em que Anchieta foi refém dos tamoios. Um estudo orientado por dados antropológicos e históricos mostraria quão verdadeiro pode ser o que se afirma. Os transeuntes, diuturnamente, são milhares, mas, para eles, as indiazinhas e suas crianças continuam invisíveis.

Para chegar ao ponto em que me detenho e me entrego às divagações, bem próximo, passo por dois grandes e belos edifícios, nos quais, os frontispícios exibem, majestáticos, a palavra ‘Justiça’. Num deles, Secretaria da Justiça, noutro, Tribunal de Justiça. Nos sites de busca da rede mundial de computadores, essa palavra se inclui em milhões de ocorrências; em apenas um desses sites, 111.000.000 (cento e onze milhões de vezes). Constituem esses indicadores estatísticos motivo de esperança ou frustração? Seria preciso acessar cada um deles para obtenção da resposta? Guiados pelo mais puro empirismo, sob o impulso exclusivo da intuição, despiciendo qualquer critério técnico, sabemos as respostas para as duas indagações.

Recuando alguns passos a partir de meu posto de observação, andando rente às tendas dos ‘sem-teto’ e bem perto das indiazinhas com suas criancinhas seminuas, e seu acervo de cuias, cestinhos de palha trançada, pequenos arcos e flechas ornamentais e algumas penas coloridas, chego à porta da Capela de Anchieta, e, ali, sofreio o passo para ler a inscrição no grande capacho de entrada: “Aqui se entra para louvar o Senhor e se sai para amar os irmãos”. Após rápida permanência no interior do templo, tendo elevado às alturas o louvor possível a uma alma semelhante à minha, dou meia-volta em direção à porta, sem reler a inscrição no largo tapete ante o qual me detivera momentos antes. Lanço os olhos rumo à direita, onde estão os irmãos –os moradores de rua e as indiazinhas- e tomo a direção oposta. Na estreita rua Roberto Simonsen (antiga rua do Carmo), de um lado, uma das Casas com a inscrição da palavra ‘Justiça’, do outro, o local onde fora erguida, nos primórdios do século XVI, em taipa de pilão, a casa número 1, hoje restaurada, o Beco do Pinto, que permitia descer da colina às margens do Tamanduateí, e o Solar da Marquesa de Santos, onde morou Domitila de Castro a partir de 1834 até seu falecimento, em 1867. A restauração do solar, preservando linhas arquitetônicas originais, impede que se diluam as derradeiras facetas de um tempo tragado pelo giro dos calendários.

O mégalo-urbanismo, que avançou célere ao longo dos anos, chegando a ocultar o desenho topográfico de Piratininga, transformou a paisagem. Houve tempos em que, à distância, era possível constatar que o cenário de meu passeio pós-almoço, é uma colina entre os rios Anhangabaú (rio das assombrações, ou dos malefícios) e Tamanduateí (rio dos tamanduás verdadeiros) em ramo linguístico tupi.

Meu passo apressado, com o intento de finalizar o passeio é interrompido pelo encontro com um grupo de seis ou sete homens negros e jovens, trocando, entre si, palavras de um dialeto desconhecido. Senegaleses? Congoleses? Nigerianos? Quem saberá? Há uma diáspora de africanos em São Paulo; há diáspora de venezuelanos no extremo Norte; há diásporas de desesperados em toda parte.

Uns fogem das minas que produzem mutilados nas savanas da África; outros tentam escapar ao regime de Nicolás Maduro; outros, ainda, empreendem fuga do cenário apocalíptico das terras de Bashar Al-Assad; muitos abandonam as regiões em que o Estado Islâmico implantou seu califado.

As citações valem como amostragem. A lista seria extensa. No planeta loteado à força das armas e afogado no sangue de etnias múltiplas circulam parcelas itinerantes da humanidade, orientadas por cartografias baldas de portos. São multidões em fuga, mas ninguém foge de países; foge de governos, ou de quem assim se intitula, ou de outros homens, que também se acham abrangidos pela inscrição no capacho da capela. Nos tempos medievais, fugia-se também das pestes, oriundas da inexistência de saneamento, que periodicamente dizimavam populações; hoje, o terror que causavam foi substituído pelo pavor disseminado por integrantes da mesma espécie dos que partem como nômades.

Voltando ao grupo de homens negros, um deles, aparentemente o mais moço, em português sofrível, puxa parte (só parte) de um documento do interior de um grande envelope e formula perguntas; decifro que se acha em busca de um cartório. Minha tentativa de ver o documento por inteiro, para prestar ajuda, é frustrada pelo gesto protetivo de recuo das mãos com o envelope. A desconfiança e o receio, naquelas jovens vidas sem pátria, estampam-se nos olhos atentos. Eu explico, eles seguem. Integram o rol dos irmãos que devem ser amados, como está inscrito à porta de entrada do templo.

Os carroções, as barracas de lona e seus artigos de qualidade contestável, as tendas dos homens sem casa, as indiazinhas com os artesanatos de seus ancestrais, as Casas de Justiça, a Casa dos Louvores ao Senhor, o amor aos irmãos, os homens africanos à procura do tabelionato, tudo, nas entranhas da mente, ingressa numa espécie de dança confusa, fluindo a passos irregulares, infensos a qualquer harmonia rítmica.

Imerso nesses pensares, melhor diria, tragado pela arritmia caótica dessa dança mental, retomo o percurso de retorno, ainda sob o sol a pino, tentando cobrir a cabeça com uma das mãos, com a outra estendida sobre os olhos, formando uma espécie de viseira protetiva contra os raios solares. Visita-me a memória o personagem narrador de Albert Camus, o insensível e infeliz Meursault que, indagado sobre o motivo do homicídio que cometera, deu como justificativa os efeitos do sol quente sobre a cabeça.

Quem leu “L’Etranger”, publicado em 1942 e traduzido para mais de quarenta idiomas, ou quem viu a adaptação cinematográfica feita por Luchino Visconti, de 1967, haverá de ter lembrança dessa passagem. O romance integra, com um ensaio (Le Mythe de Sisyphe) e uma peça (Calígula), o que se conhece como o ‘ciclo do absurdo’ de Camus.

Talvez não seja necessário o mergulho reflexivo na trilogia do grande escritor para um encontro com a absurdez e o insólito. Basta um giro a pé, após o almoço, pelas ruas de qualquer metrópole.

O mégalo-urbanismo faz mais em prol da criação abundante de absurdos do que os gênios da literatura juntos, pois todos os dias, entre os paredões de concreto, aço e vidro dos arranha-céus que nos dividem, tudo muda e nada muda; entre as trilhas de toneladas de lixo distribuídas nos sacos plásticos negros que se entulham nas calçadas ao entardecer, recobertos pela fuligem do dia, tudo muda e nada muda; na atmosfera das ruas, impregnadas pelo monóxido das máquinas que se congestionam como formigueiros mecanizados, tudo muda e nada muda.

E assim é porque o mégalo-urbanismo, com suas vastidões pluripolarizadas, na verdade, não passa de mais um filho do tempo. Este, que teve outras crias primevas, como o nomadismo, os aldeamentos, tem, no ciclo em curso, as conurbações tentaculares, possuidoras de pontos em comum com o processo de metástase do campo biológico. O tempo, este, de fato, opera as mudanças. Muda tudo. Mudará o homem?

Se a pergunta fosse dirigida a Meursault, qual seria sua resposta? Suponho que Meursault, arquétipo de uma parcela de todos nós, não se importaria em responder e daria de ombros.

*O autor é procurador de Justiça, com licenciatura plena em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Atuou no radiojornalismo e na imprensa escrita. Membro da Academia Brasileira de Direito Criminal.

Outros Artigos

As gavetas

Antonio Carlos Augusto Gama

Desencontro (poesia)

Antonio Carlos Augusto Gama

Reflexões

Adelmo Pinho

Ruas (poesia)

Walter Paulo Sabella